O supradesnivelamento do segmento ST é uma das alterações eletrocardiográficas mais reconhecíveis e, ao mesmo tempo, mais complexas da cardiologia moderna. Embora clássico no contexto do infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento (IAMCSST), seu significado vai muito além, abrangendo nuances diagnósticas, armadilhas morfológicas, e implicações prognósticas relevantes. Este artigo se propõe a revisar, de forma didática e abrangente, tudo que o cardiologista precisa saber sobre esse fenômeno.
🧠 O Surgimento do Conceito: As Contribuições de Harold Pardee
Em 1920, Harold Pardee publicou o primeiro relato associando o supradesnivelamento do segmento ST à obstrução aguda de uma artéria coronária. A observação ocorreu em um paciente com sintomas típicos de angina e foi confirmada por estudos experimentais em animais, que demonstraram alterações semelhantes após a ligadura das artérias coronárias.
Pardee notou que a elevação abrupta do segmento ST a partir do ponto J refletia a lesão miocárdica resultante da isquemia transmural. A partir dessas descobertas, o supradesnivelamento do ST passou a ser um dos principais indicadores eletrocardiográficos de infarto transmural.

📏 Como Medir Corretamente o Supradesnivelamento
A medição do supradesnivelamento deve ser feita a partir do ponto J (junção entre o QRS e o segmento ST) em relação à linha isoelétrica. Esta, por sua vez, pode ser determinada com base no segmento TP ou, preferencialmente, na junção PQ, especialmente em pacientes com taquicardia ou instabilidade da linha de base.

Embora os pontos de corte propostos pelas diretrizes sejam úteis na prática clínica, especialmente em estudos populacionais e protocolos de emergência, é importante lembrar que eles não são absolutos. Casos de supradesnivelamento sutil demonstram que alterações isquêmicas relevantes podem ocorrer mesmo abaixo desses limiares. A tabela abaixo resume esses critérios:
Derivações | Homens ≥ 40 anos | Homens < 40 anos | Mulheres |
---|---|---|---|
V2-V3 | ≥ 2 mm | ≥ 2,5 mm | ≥ 1,5 mm |
Outras | ≥ 1 mm | ≥ 1 mm | ≥ 1 mm |
🧐 O Desafio do Supradesnivelamento Sutil
O supradesnivelamento sutil, com elevação entre 0,1 mm e 1 mm, é particularmente desafiador. Estudos mostram que até 18% dos pacientes com IAMCSST apresentam apenas essas alterações discretas. Isso é mais comum nos infartos relacionados à artéria circunflexa (CX), cujas regiões irrigadas geram menos vetor de ativação para as derivações usuais.
Nestes casos, a presença de infradesnivelamento recíproco e a avaliação clínica tornam-se fundamentais.

🔍 A Morfologia do ST: Côncavo ou Convexo?
Historicamente, ensinou-se que a morfologia côncava seria “benigna” e a convexa indicaria isquemia. No entanto, estudos mostraram que até 43% das oclusões da DA cursam com morfologia côncava. A morfologia, portanto, não deve ser usada isoladamente.
A evolução da morfologia ao longo do tempo pode ser mais informativa: um segmento ST que progride de côncavo para convexa reflete o agravamento da isquemia transmural.
Aqui no nosso site já abordamos este assunto no artigo: O Mito do Supra Feliz.
🔁 Infradesnivelamento Recíproco: Um Marcador de Isquemia
O infradesnivelamento recíproco, ou “em espelho”, é um forte indicador de infarto transmural e está presente em até 80% dos IAMCSST. Sua presença está associada a maior área de miocárdio em risco e pior prognóstico. Também auxilia na distinção com outras condições, como pericardite.
O infradesnivelamento recíproco, ou “em espelho”, é uma alteração eletrocardiográfica que reflete a repercussão à distância da isquemia transmural. Ele ocorre por mecanismos eletrofisiológicos complexos, envolvendo vetores opostos ao local da lesão miocárdica, o que o torna uma manifestação indireta, porém valiosa, da presença de infarto agudo com supradesnivelamento do ST.
Está presente em até 80% dos IAMCSST e se associa à extensão da área isquêmica, maior risco de disfunção ventricular e pior prognóstico clínico. Em muitos casos, o infradesnivelamento recíproco é o primeiro ou único sinal de que há isquemia significativa em território oposto ao da derivação alterada.
O infradesnivelamento recíproco aumenta a especificidade do diagnóstico de IAM e pode ser útil para diferenciar IAM de pericardite, pois esta última geralmente apresenta elevações difusas sem alterações recíprocas.
🗺️ Localização do Infarto: Usando o ECG como Mapa Coronário
A distribuição topográfica das alterações do ST permite inferir a artéria culpada. A análise sistemática das derivações permite identificar infartos septais, anteriores, laterais, inferiores e do VD. O uso de derivações adicionais (V7-V9, V3R-V4R) amplia a sensibilidade para infartos “ocultos”.
Terminologia | Derivações Eletrocardiográficas | Local Provável da Oclusão Coronária |
---|---|---|
Septal | V1 e V2 | Ramo septal da DA |
Anteroapical | V1-V2 até V3-V6 | Terço médio da DA |
Anterior extensa | V1-V2 até V4-V6, D1 e aVL | Terço proximal da DA |
Anterior média | D1 e aVL, às vezes V2-V3 | Primeiro ramo diagonal |
Lateral | D1, aVL, V5 e V6 | Terço proximal da CX |
Lateral posterior | V7-V9, infra ST/RS V1 e V2 | Terço proximal da CX |
Inferior | D2, D3 e aVF | CD ou CX |
Inferolateral | D2, D3, aVF, D1, aVL, V5-V6, V7-V9 | CD ou CX |
Ventrículo direito | V3R e V4R | CD proximal |
⚠️ Padrões Morfológicos de Alto Risco
Alguns padrões eletrocardiográficos estão associados a pior prognóstico:
Padrão em Lápide
O padrão em lápide (“tombstoning ST elevation”) é uma morfologia característica do supradesnivelamento do ST associada a infartos agudos extensos, especialmente da parede anterior, por oclusão proximal da artéria descendente anterior (DA).
Características eletrocardiográficas:
- Supradesnivelamento convexo acentuado do segmento ST.
- O segmento ST se funde com a porção descendente da onda R ou diretamente com um complexo QS/QR.
- Ausência de uma onda R claramente definida ou presença de R com < 40 ms de duração.
- O pico do segmento ST é maior do que a amplitude da onda R (quando presente).
- A onda T se funde com o ST, formando um padrão monofásico.
Implicações clínicas:
- Associado a grande área de infarto e risco aumentado de choque cardiogênico e fibrilação ventricular.
- Mortalidade aumentada em comparação a outros padrões de supradesnivelamento.
- Requer abordagem agressiva e imediata com reperfusão precoce.

Sinal da Barbatana de Tubarão (onda lambda)
Também conhecido como “padrão triangular” ou “onda R gigante”, o sinal da barbatana de tubarão é uma morfologia rara, mas extremamente grave, de supradesnivelamento do segmento ST. O traçado lembra uma barbatana emergindo da superfície, resultado da fusão entre o complexo QRS, o segmento ST e a onda T.
Características eletrocardiográficas:
- Presença de onda R de grande amplitude (> 10 mm).
- Fusão completa do QRS, ST e T formando uma morfologia triangular monofásica.
- Onda lambda: componente J proeminente seguido de um declínio do ST que se funde com a T negativa.
- Polaridade geralmente positiva nas derivações que exploram a área isquêmica.
Implicações clínicas:
- Altamente associado a OCA de DA ou CD proximal, com ausência de circulação colateral.
- Indicador de risco elevado para fibrilação ventricular, parada cardíaca extrahospitalar e choque cardiogênico.
- Mortalidade hospitalar reportada entre 50% e 70%.

📉 Sensibilidade do Supradesnivelamento do ST
Apesar de ser um dos critérios eletrocardiográficos mais valorizados, o supradesnivelamento do segmento ST apresenta sensibilidade limitada para o diagnóstico de oclusão coronária aguda (OCA).
Uma meta-análise recente realizada por nossa equipe, incluindo três grandes estudos com mais de 23 mil pacientes, revelou que a sensibilidade do supradesnivelamento do ST para detectar OCA é de apenas 43,6%. Isso significa que mais da metade dos pacientes com uma artéria ocluída não apresentavam supradesnivelamento clássico no ECG.
Por outro lado, a especificidade foi bastante elevada, atingindo 96,5%, com uma razão de verossimilhança positiva (RV+) de 12,77, indicando que, quando presente, o supradesnivelamento aumenta substancialmente a probabilidade de OCA. No entanto, a razão de verossimilhança negativa (RV–) foi de 0,58, mostrando que sua ausência não é suficiente para excluir infarto por oclusão.
Esses dados enfatizam a importância de considerar outros sinais eletrocardiográficos de oclusão, especialmente nos casos em que o quadro clínico sugere infarto, mas não há supradesnivelamento clássico.
🔄 O Novo Paradigma OCA-NOCA
A classificação tradicional entre IAMCSST e IAMSSST baseia-se quase exclusivamente na presença ou ausência do supradesnivelamento do ST. No entanto, evidências recentes mostram que essa abordagem tem baixa sensibilidade para detectar todas as oclusões coronárias agudas (OCA).
A proposta do paradigma OCA-NOCA considera o ECG como uma ferramenta para detectar oclusão, independentemente da presença do “supra clássico”. Esse paradigma já se mostrou mais sensível, com taxa de detecção de OCA em torno de 78% quando múltiplos sinais eletrocardiográficos são considerados, mantendo uma especificidade elevada. Dessa forma, pacientes com infarto por OCA, mas sem supradesnivelamento clássico, podem ser identificados e tratados precocemente.
✅ Conclusão: O ST Ainda é Rei, Mas o Reino é Maior
O supradesnivelamento do segmento ST continua sendo um marcador de grande valor, mas não pode mais reinar sozinho. A interpretação moderna do ECG exige o reconhecimento de padrões morfológicos, sinais recíprocos, derivações adicionais e correlação clínica.
A ausência de supradesnivelamento não exclui OCA. Reconhecer os sinais “ocultos” e padrões de alto risco pode ser a diferença entre um paciente bem manejado e um diagnóstico perdido.
Para aprofundar seus conhecimentos, conheça também nosso livro Eletrocardiograma de A a Z, que explora todos esses conceitos com exemplos práticos e casos comentados.
📚 Referencias
- Scheffer MK, De Marchi MFN, de Alencar Neto JN, Felicioni SP. Eletrocardiograma de A a Z. São Paulo: Manole, 2024.
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