Fragmentação do QRS: Um marcador subestimado no eletrocardiograma

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O que a fragmentação do QRS pode revelar?

O eletrocardiograma (ECG) é uma ferramenta poderosa, capaz de identificar áreas de fibrose miocárdica e cicatrizes cardíacas. Provavelmente, você já está familiarizado com as clássicas ondas Q, que surgem na evolução de um infarto agudo do miocárdio com oclusão coronariana. Mas e se dissermos que existe outro marcador, menos conhecido, mas igualmente importante?

A fragmentação do QRS (fQRS), um padrão descrito mais recentemente, revela anormalidades sutis na condução elétrica que podem indicar fibrose miocárdica, prever eventos cardíacos adversos e até sinalizar maior risco de mortalidade. Neste artigo, vamos explorar os critérios, mecanismos e implicações clínicas deste marcador indispensável para a prática eletrocardiográfica moderna.

Ondas Q patológicas: Como e quando se formam?

As ondas Q patológicas surgem quando uma área do miocárdio sofre infarto transmural, resultando na ausência de atividade elétrica gerada nessa região. Esse fenômeno é observado no início do QRS porque a área afetada é despolarizada muito precocemente, nos primeiros 40 a 50 ms do ciclo elétrico ventricular. Esse processo cria uma força elétrica dirigida para longe da região do infarto, resultando na formação da onda Q nas derivações correspondentes.

No entanto, o surgimento de uma onda Q patológica depende do tamanho e da localização do infarto. Pequenas cicatrizes ou áreas mais profundas podem não gerar ondas Q visíveis no ECG, limitando sua sensibilidade como marcador de cicatriz miocárdica​.

Fragmentação do QRS: Definição e Critérios

A fragmentação do QRS, por outro lado, reflete áreas de cicatriz ou fibrose miocárdica que interrompem a condução elétrica no meio ou no final do QRS, diferentemente das ondas Q. Essas regiões despolarizam tardiamente devido a alterações na condução intramiocárdica causadas por tecido fibroso ou irregularidades estruturais. O resultado é a presença de ondas adicionais, como entalhes ou R’ tardios, que fragmentam o complexo QRS​. Estes entalhes ou ondas adicionais são observados em duas ou mais derivações contíguas que correspondem a territórios coronarianos. O padrão de fragmentação pode ser encontrado tanto em QRS estreitos (<120 ms) quanto em QRS largos, como nos casos de bloqueio de ramo ou ritmo estimulado​.

Critérios diagnósticos no ECG

  • Presença de uma onda R’ adicional, entalhe no nadir da onda S ou fragmentação com ≥ 1 R’ em pelo menos 2 derivações contíguas
  • No caso de QRS largos (≥120 ms), a fragmentação é definida pela presença de ≥ 2 entalhes na onda R ou S, também em derivações contíguas
Eletrocardiograma com bloqueio de ramo direito e fragmentação do QRS
ECG | Fragmentação do QRS

Por que isso ocorre?

  • Cicatrizes miocárdicas: Interrompem a propagação elétrica normal, causando condução lenta e bloqueios locais.
  • Tecido fibroso: Cria caminhos de condução irregulares, levando à ativação elétrica tardia em áreas específicas do miocárdio.
  • Foco da despolarização tardia: Enquanto as ondas Q indicam ausência de despolarização em uma região infartada, a fQRS sinaliza a presença de áreas com condução atrasada no ciclo​.

Etiologias

As etiologias mais comuns incluem infarto do miocárdio prévio, onde áreas de necrose evoluem para cicatrizes fibróticas, e doença arterial coronariana com isquemia crônica. Outras causas incluem cardiomiopatias, como a dilatada e a hipertrófica, que promovem remodelamento e disfunção ventricular, além de doenças infiltrativas, como sarcoidose e amiloidose, que afetam a condução elétrica ao alterar a arquitetura miocárdica. Também pode ser observada em condições não isquêmicas, como miocardite, e até em algumas doenças sistêmicas, como apneia do sono obstrutiva e doenças autoimunes, que podem secundariamente comprometer a condução cardíaca.

Comparação entre ondas Q e fQRS

CaracterísticaOnda QFragmentação do QRS (fQRS)
Momento de formaçãoInício do QRS (40-50 ms iniciais)Meio e final do QRS
Causa principalDepolarização inicial ausenteDepolarização atrasada
Indicativo deInfarto transmuralCicatriz ou condução anormal
SensibilidadeMenor (36%-51%)Maior (68%-86%)
EspecificidadeAlta (97%)Moderada (80%-92%)

Implicações clínicas e prognósticas

Detecção de cicatrizes miocárdicas

A fQRS é um marcador confiável para localizar cicatrizes em territórios específicos, mesmo quando as ondas Q estão ausentes. Por exemplo:

  • Anteriores: Derivações V1 a V5.
  • Laterais: Derivações D1, aVL, V6.
  • Inferiores: Derivações D2, D3, aVF​.

Prognóstico cardiovascular

Estudos mostram que a presença de fQRS está associada a:

  • Maior risco de mortalidade geral e cardiovascular.
  • Predição de eventos como insuficiência cardíaca e arritmias ventriculares.
  • Pior desfecho hospitalar em pacientes com síndromes coronarianas agudas​.

Pontos importantes

  1. A onda Q reflete despolarização ausente em áreas infartadas, visível nos primeiros 40-50 ms do QRS.
  2. A fragmentação do QRS surge de despolarizações tardias, afetando o meio e o final do QRS.
  3. A fQRS é mais sensível que as ondas Q para detectar cicatrizes miocárdicas, além de oferecer valor prognóstico significativo.
  4. Identificar a fQRS no ECG é um passo simples, mas essencial, na prática clínica.

Referências

  1. Das MK, Khan B, Jacob S, Kumar A, Mahenthiran J. Significance of a fragmented QRS complex versus a Q wave in patients with coronary artery disease. Circulation. 2006;113(21):2495–501.
  2. Das MK, Suradi H, Maskoun W, Michael MA, Shen C, Peng J, et al. Fragmented wide QRS on a 12-lead ECG: a sign of myocardial scar and poor prognosis. Circ Arrhythm Electrophysiol. 2008;1(4):258–68.
  3. Das MK, Zipes DP. Fragmented QRS: A predictor of mortality and sudden cardiac death. Hear Rhythm [Internet]. 2009;6(3 SUPPL.):S8–14. Available from: http://dx.doi.org/10.1016/j.hrthm.2008.10.019
  4. Sadeghi R, Dabbagh VR, Tayyebi M, Zakavi SR, Ayati N. Diagnostic value of fragmented QRS complex in myocardial scar detection: Systematic review and meta-analysis of the literature. Kardiol Pol. 2016;74(4):331–7.

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Matheus Kiszka Scheffer

Matheus é médico do setor de Tele-Eletrocardiografia do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia (IDPC), autor do livro Eletrocardiograma de A a Z e editor-chefe do site "Aprenda ECG". Possui especialização em Eletrofisiologia Clínica e residência médica em Cardiologia e Clínica Médica.